Tive recentemente conhecimento de uma decisão da nossa mais alta instância judicial que não posso de deixar de partilhar com os (poucos) que lêem este blog.
Esta decisão foi proferida no âmbito de um processo relacionado com um tema que, de uma forma ou de outra, toca todos os portugueses: a sinistralidade rodoviária.
E neste processo em particular, os familiares de um sinistrado que falecera em consequência de (mais) um acidente de viação, reclamavam da competente companhia de seguros as indemnizações a que entendiam ter direito.
À primeira vista, este processo não tem qualquer particularidade que o distinga de centenas de outros que estão a correr termos nos nossos Tribunais.
Mas uma análise mais cuidada revela-nos este aspecto curioso: apesar de peticionarem a condenação da Ré no pagamento dos danos não patrimoniais decorrentes da morte do respectivo pai e marido, não alegaram (e, consequentemente, não provaram) quaisquer factos a esse respeito.
Trocado por miúdos: apesar de pedirem uma indemnização pelo sofrimento que viveram com a morte do pai e marido, a viúva e os menores não fizeram qualquer prova que permitisse ao Tribunal concluir que tinham efectivamente sofrido com a morte daquele.
Ora, de acordo com o que ensinam os manuais de Direito, no âmbito da responsabilidade extracontratual (na qual nos encontramos), a regra é a de que incumbe ao lesado provar os danos.
Trata-se, aliás, de uma regra que não conhece, tanto quanto me parece, excepção alguma.
Contudo, apesar disto, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu atribuir uma indemnização aos Autores a esse título, expondo o seguinte raciocínio:
"É certo que não ficaram provados nenhuns elementos de facto respeitante a esta matéria. A Relação, fundando-se nas regras da experiência, arbitrou as indemnizações a título de danos não patrimoniais.
Os danos não patrimoniais têm de ser alegados e provados pelo autor. E é costume neste tipo de acções os peticionantes referirem a dor moral que funda o seu pedido.
No entanto, cabe ver se essa dor não está implícita no próprio pedido de tal tipo de danos. Manifesto que está.
Independentemente de vir a ser provado um certo desgosto ou uma sua maior ou menor intensidade, o que poderá condicionar os limites da reparação, o seu cerne resulta desde logo da própria qualidade dos demandantes. A viúva e os filhos do falecido que pedem indemnização pela morte do seu marido e pai estão apenas a requerer aquilo que, mais até do que derivado da experiência, é um dado cultural básico.
Que os laços familiares têm um forte conteúdo afectivo e que a sua interrupção traumática é fonte de sofrimento. A notoriedade cultural também vincula os tribunais. Nem se diga, como o recorrente, que nem sempre assim acontece. É evidente que não. Mas, nesse caso, isso constituirá matéria de excepção, a provar pelo réu".
Os conhecimentos jurídicos e das regras da experiência dos Juízes do STJ certamente que ultrapassam olimpicamente os meus, mas sinto-me obrigado a colocar algumas questões:
- É verdade que, no mundo real, são raras as situações em que a morte de um pai e marido não provocam sofrimento. Mas será isso suficiente para estabelecermos a presunção de que isso ocorre em todos os casos? Não será uma generalização que vai para além das próprias regras da experiência e que ultrapassa o intuito com que foi "aberta a porta" às presunções judiciais?
- Não fará este entendimento impender sobre as Seguradoras ou o Fundo de Garantia Automóvel, conforme o caso, um ónus de prova diabólico? Como se faz tal prova?
- Não representa este entendimento uma redução dos requisitos que incumbe ao Autor provar, contrariando a própria lei?
Por último, quero apenas chamar a atenção para o facto de os advogados, como qualquer outro profissional, serem responsáveis pela forma como conduzem o processo. Portanto, se o STJ entendesse não conferir tal indemnização aos Autores, a verdade é que estes sempre teriam a possibilidade de reclamar deste as quantias perdidas.
Contra mim falo, mas "quem anda à chuva, molha-se".
P.S.: Aos meus colegas de blog e aos poucos leitores, peço desculpa pela prolongada ausência mas foi por uma boa causa.
Toda a razão. A menos que fosse facto notório o sofrimento dos lesados...
ResponderEliminarFoi uma óptima causa.
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