por Eduardo Dâmaso, no editorial de hoje
A investigação do Ministério Público aos voos da CIA sobre território português transportando prisioneiros que possam ter sido submetidos a tortura é um passo no sentido certo mas tardio. É pena que o Ministério Público só tenha tomado uma iniciativa a reboque do trabalho abnegado e persistente da deputada Ana Gomes e não tenha tomado a iniciativa de avançar para um inquérito.
Essa seria uma boa maneira de nos dizer que a sua essência não é apenas a defesa dos superiores interesses do Estado, seja lá isso o que for, mas que zela de forma activa e autónoma pela saúde do Estado de direito democrático.
A estranha união que esta questão tem criado entre sectores do PS, PSD e CDS só nos pode inquietar na medida em que nos diz que os interesses mais subterrâneos desta convergência estarão relacionados com uma concepção particular daquilo que é o interesse da Nação. Ou seja, defesa tão acirrada da opacidade do Estado e ataque tão descabelado a Ana Gomes e a todos os que expressam as suas preocupações sobre a questão sugerem-nos uma enorme incomodidade política só compreen- sível perante a possibilidade de as sarjetas do poder de Estado guardarem o segredo terrível de um colaboracionismo abjecto com o sequestro e a tortura. Um colaboracionismo com o terrorismo de Estado, essa fórmula salvífica de violação das leis nacionais e internacionais, de aniquilação dos direitos humanos, de consagração da tortura, de varrimento de séculos de lutas por conquistas nos direitos civis para debaixo do tapete, que democratas de ontem e talibãs de hoje defendem como a fórmula acabada de nos livrar a todos do mal islamita.
O desafio colocado a esta investigação do Ministério Público é gigantesco para que ela própria não se transforme no certificado necessário aos defensores da tese de que todos nos devemos vergar perante os superiores interesses do Estado. Por isso, para superar a partida tardia talvez não fosse mau que todos, mas todos, os meios de recolha de prova fossem desencadeados. Das escutas à desclassificação de documentos secretos que seguramente existem nessa condição. E que todos sejam obrigados, nem que seja moralmente, face às responsabilidades políticas que tiveram, a colaborar. Dos primeiros-ministros em funções desde o início da guerra do Iraque aos ministros da Defesa, dos Negócios Estrangeiros, da Administração Interna e da Justiça, acabando nos chefes das polícias, aeronáutica civil e militar, aeroportos e serviços de informações. Se é para investigar, então que se vá até ao fundo. Ao menos uma vez na vida!
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