Anselmo BorgesPadre e professor de Filosofia
Numa questão tão delicada, com a vida e a morte em jogo, não se pretende que haja vencedores nem vencidos, mas um diálogo argumentado, para lá da paixão e mesmo da simples compaixão. Ficam alguns pontos para reflectir.
1. O aborto é objectivamente um mal moral grave. Aliás, ninguém é a favor do aborto em si, pois é sempre um drama.
2. A vida é um bem fundamental, mas não é um bem absoluto e incondicionado. Se o fosse, como justificar, por exemplo, o martírio voluntário e a morte em legítima defesa?
3. Para o aparecimento de um novo ser humano, não há "o instante" da fecundação, que é processual e demora várias horas.A gestação é um processo contínuo até ao nascimento. Há, no entanto, alguns "marcos" que não devem ser ignorados. É precisamente o seu conhecimento que leva à distinção entre vida, vida humana e pessoa humana. O blastocisto, por exemplo, é humano, vida e vida humana, mas não um indivíduo humano e, muito menos, uma pessoa humana.Se entre a fecundação e o início da nidação (sete dias), pode haver a possibilidade de gémeos monozigóticos (verdadeiros), é porque não temos ainda um indivíduo constituído.Antes da décima semana, não havendo ainda actividade neuronal, não é claro que o processo de constituição de um novo ser humano esteja concluído.
De qualquer modo, não se pode chamar homicídio, sem mais, à interrupção da gravidez levada a cabo nesse período.
4. Sendo o aborto objectivamente um mal, deve fazer-se o possível para evitá-lo. Tudo começa pela educação e formação. Impõe-se uma educação sexual aberta e responsável para todos, que, não ficando reduzida aos aspectos biológicos e técnicos, tem de implicá-los, fazendo parte dela o esclarecimento, sem tabus, quanto à contracepção.
5. O aborto é uma realidade social que nem a sociedade nem o Estado podem ignorar. Como deve então posicionar-se o Estado frente a essa realidade: legalizando, liberalizando, penalizando?
6. Não sem razão, pensam muitos (eu também) que, se fosse cumprida, a actual lei sobre a interrupção da gravidez, permitida nos casos de perigo de morte ou grave e duradoura lesão para a mãe, de nascituro incurável com doença grave ou malformação congénita e de crime contra a liberdade e autonomia sexual (vulgo, violação), seria suficiente.
7. De qualquer forma, vai haver um referendo. O que se pergunta é se se é a favor da despenalização do aborto até às dez semanas, em estabelecimentos devidamente autorizados, por opção da mulher.Por despenalização entende-se que, a partir do momento em que não há uma pena, a justiça deixa de perseguir a mulher que aborta e já não será acusada em tribunal. Aparentemente, é simples. Mas compreende-se a perplexidade do cidadão, que, por um lado, é a favor da despenalização - despenalizar não é aprovar e quem é que quer ver a mulher condenada em tribunal? -, e, por outro, sente o choque de consciência por estar a decidir sobre a vida, realidade que não deveria ser objecto de referendo. O mal-estar deriva da colisão dos planos jurídico e moral.
8. Impõe-se ser sensível àquele "por opção da mulher" tal como consta na pergunta do referendo, pois há aí o perigo de precipitações e arbitrariedades. Por isso, no caso de o "sim" ganhar, espera-se e exige-se do Estado que dê um sinal de estar a favor da vida.Pense-se no exemplo da lei alemã, que determina que a mulher, sem prejuízo da sua autonomia, deve passar por um "centro de aconselhamento" (Beratungsstelle) reconhecido.
Trata-se de dialogar razões, pesar consequências, perspectivar alternativas. A mulher precisará de um comprovativo desse centro e entre o último encontro de aconselhamento e a interrupção da gravidez tem de mediar o intervalo de pelo menos três dias. As custas do aborto ficam normalmente a cargo da própria.
O penalista Jorge Figueiredo Dias também escreveu, num contexto mais amplo: "O Estado (...) não pode eximir-se à obrigação de não abandonar as grávidas que pensem em interromper a gravidez à sua própria sorte e à sua decisão solitária (porventura na maioria dos casos pouco informada); antes deve assegurar-lhes as melhores condições possíveis de esclarecimento, de auxílio e de solidariedade com a situação de conflito em que se encontrem. Sendo de anotar neste contexto a possibilidade de vir a ser considerada inconstitucional a omissão do legislador ordinário de proporcionar às grávidas em crise ou em dificuldades meios que as possam desincentivar de levar a cabo a interrupção".
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Gostei. Especialmente no que concerne 'a forma como a alemanha lida com a situacao. Parece-me sensata.
ResponderEliminarGostei. Especialmente no que concerne 'a forma como a alemanha lida com a situacao. Parece-me sensata.
ResponderEliminarMas infelizmente não é esse tipo de lei (como a alemã ou a francesa) que se referenda. Se fosse, eu teria uma opinião diferente.
ResponderEliminarO que está em causa neste referendo é apenas a liberalização total do aborto a pedido da mulher, sem que se exijam causas, sem ouvir a opinião do pai da criança, sem impor nada.
A mulher escolhe, livremente, sobre o destino da vida que tem dentro de si.
Gostei deste post. Pelo que sei, ou me foi dado a conhecer nos Hospitais, quando uma mulher grávida aparecer a dizer que quer abortar haverá um gabinete de aconselhamento que envolverá vários profissionais de várias áreas, ejam médicos ou psicólogos, de modo a tentar que o aborto seja mesmo a última opção e isso a meu ver é extremamente importante.
ResponderEliminarE acabando por onde o texto começa é óbvio que qualquer pessoa é contra o aborto. EU SOU. E acredito que só situações extremas possam levar alguém a recorrer a algo tão violento.
Eu opto por um SIM, completamente consciente.
Será que o SIM é a melhor solução?Será que o Estado vai mesmo conseguir responder a todas as mulheres que queiram abortar?Será que isto não vai ser mais uma fonte de lucro para os privados?Será que o aborto clandestino vai mesmo acabar?Apesar de concordar com o aborto em algumas situações (mais do que aquelas que já estão legalmente previstas) não posso deixar de recear o que esta lei quer impor...É uma liberalização total...sem aconselhamentos,sem reflexões...tenho tantas dúvidas...!!
ResponderEliminarPaulo, a lei liberaliza até às 10 semanas. Se quiseres acompanhamento ou uma despenalização, terás de votar não. Esta lei torna-o livre, sem causa, sem opiniões, sem aconselhamento, sem nada.
ResponderEliminartambém considero que o acompanhamento psicológico é muito importante - desde que a decisão continue a ser da mulher, e não dos "acompanhantes". mas acho fundamental, claro.
ResponderEliminarsó que...
se votarmos sim, a lei passa, e o Estado não é obrigado a criar os tais centros de aconselhamento e apoio; se votarmos não, continua tudo na mesma.
assim sendo, considero um mal menor avançar este passo. e depois então, procurar avançar o outro. caso contrário, corre se o risco de esperarmos mais 9 anos por nova tentativa de alteração da lei...
Mas o acompanhamento vai ser uma realidade. Isso já está definido, até no próprio Ministério da Saúde.
ResponderEliminarE o acompanhamento e aconselhamento é crucial naturalmente de modo a tornar a decisão de abortar como a última alternativa, sendo uma alternativa POSSÍVEL.
MB, o aborto é, neste momento uma grande fonte de receita para privados, ilegais, e marginais. Não sei se o Estado conseguirá abarcar todos os casos, creio q sim, mas mesmo q vão aos privados com consentimento do Estado, até nisso, é melhor do q ir a qualquer parteira ou clinica clandestina.
As contas estão mais ou menos feitas, são um pouco díspares como é natural quando há dois lados a confrontarem-se com números. Mas há também muito dinheiro que se poupa no tratamento das complicações pós aborto. Li no outro dia, na Visão, um testemunho que me deixou ainda mais convencido da minha decisão. Uma senhora francesa (não me recordo o nome), que foi a responsável pela monitorização do aborto em França , com números franceses, disse que os abortos não aumentaram, a natalidade não baixou, e o Estado poupou imenso por causa das complicações pós aborto pois, segundo ela, houve zero casos quando antes eram milhares. É significativo.
Paulo, ambos sabemos que a lei francesa faz uma despenalização em casos de angústia da mulher e em casos de insuficiência sócio-económica.
ResponderEliminarE ambos sabemos que o que se votará dia 11 é uma liberalização do aborto a pedido da mulher.
A lei dispõe que o aborto é LIVRE, logo independente de acompanhamento que será, no mais, facultativo.
E ambos sabemos também que poucos países têm leis como a que vai ser votada, mas que existem. Um deles é a Áustria onde os dados oficiais vêm dizer que o aborto duplicou desde que se tornou livre.
Além de estar agora em discussão nesse país a recriminalização, embora despenalizada em certas situações... Basicamente, o regresso à lei que temos...
Não por ser livre que vai deixar de ser acompanhada. Afonso, tás a ficar com uma tendência para a demagogia ou para a cegueira pá.
ResponderEliminarA partir do momento que entras num estabelecimento de saúde para abortar vais ter acompanhamento e aconselhamento.Antes e depois. Antes para tentar talvez demover a abortante da sua ideia, e depois minorando os estragos psicológicos que poderá ter.
É normal que na Áustria os números disparássem quando se tornou livre. Antes não havia números.
Aqui, provavelmente tb acontecerá isso, apenas há estimativas.É lógico.
Bem, também te digo , se a nossa lei fosse como a francesa, com a inclusão da falta de condições económicas, a meu ver, estaria muito melhor.
Não só estaria muito melhor como seria a solução que todos aceitariam (excepto talvez os mais radicais de um lado ou do outro).
ResponderEliminarIsso seria uma despenalização. Ainda bem que concordas comigo.
Por isso digo: Assim, NÃO.