quinta-feira, 19 de outubro de 2006

A escandaleira do referendo ao Aborto

É conhecida a minha posição substantiva quanto ao Aborto. E não é sobre isso que me quero pronunciar. Mas sim quanto ao referendo em si mesmo. Haver um referendo é obviamente uma boa decisão. Uma questão como esta não se prende qualquer plano político-partidário e, assim, os deputados à Assembleia da República não têm mandato para decidir. É o povo soberano quem tem de se pronunciar.
Mas há 3 aspectos que me chocam profundamente:

1- Despenalização/Liberalização: O referendo vai perguntar se o povo concorda com a "despenalização" do aborto. Uma despenalização implicaria o fim da sanção criminal e da tipificação penal mas a manutenção de uma proibição e a existência de uma qualquer sanção. Ora, não é nada disso que está em causa! O que está em discussão é uma verdadeira liberalização, o permitir que até às 10 semanas as mulheres sejam livres de ir ao SNS realizar um aborto, de forma absolutamente livre e sem qualquer penalização. Se toda a gente sabe que assim é (aliás, é um dos argumentos do Sim), porquê enganar o povo e usar um eufemismo falso? Eu talvez votasse sim à despenalização e à substituição da sanção penal por outra. Porque é um assunto profundamente diferente!

2- Aborto/IVG:
Neste referendo utiliza-se a expressão eufemística de "interrupção voluntária da gravidez". Não teria nada contra, pois no fundo trata-se apenas de um eufemismo para tratar da mesma coisa. Mas a troca assume um carácter escandaloso quando se está a falar de um artigo do código penal que se chama "Aborto". Ora, se o que está em causa é a alteração da lei penal quanto ao crime de aborto, claramente a utilização da expressão "IVG" é um eufemismo orientado no sentido de induzir o povo a votar "Sim". Ou seja, lá se engana o povo mais uma vez...

3- A rigidez dos prazos: Para quem acha que é retrógrado e obscurantista considerar crime o aborto até às 10 semanas, fará sentido que às 10 semanas e um dia já seja crime condenável com prisão? Um dia faz a diferença? O que me parece um disparate é este tudo ou nada. Ora é livre até às 10 semanas, ora é crime punível com prisão a partir daí. Um disparate.

Enfim. Isto revolta-me profundamente. Estão a manipular os eleitores a tomar uma decisão que deve caber à consciência de cada um. Porque é uma decisão que apenas diz respeito à livre convicção e valores de cada um.

14 comentários:

  1. No plano teórico não poderia estar mais de acordo contigo em relação à despenalização/liberalização, e quanto à terminologia!

    Mas, na prática, há que deixar de considerar o português/eleitor como um estupiduzinho que não percebe o que se está a discutir: é do conhecimento comum que estamos a discutir se o "aborto" é ou não "livre", e nada mais, chamem-lhe o que chamar! E não é porque se diz "despenalização" e "IVG" que o voto de cada um dos portugueses será diferente!

    Quanto às 10 semanas, cabe dizer que há que haver um limite! Não se poderá permitir com 9 meses, de certeza! E por isso, o problema de x semanas e 1 dia é incontornável!

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  2. Não podemos partir do pressuposto que o povo é estúpido. Se partimos desse pressuposto, estamos a tirar-lhe a soberania. Mesmo que o povo seja estúpido, é ele quem manda. Por isso é que às vezes faz tão más escolhas (hehehe!).

    O problema das 10 semanas e um dia é contornável. Basta que haja uma graduação! Não pode é chamar-se obscuro e retrógrado considerar crime até às 10 semanas mas não haver qualquer problema às 10 semanas e um dia! Há outras formas de punição antes da intervenção do direito penal. É um disparate passar do livre para a ultima ratio num dia só. Às 11 semanas já não é retrógrado e obscurantista considerar crime?

    Há outros níveis de actuação das proibições. Porque se o feto AINDA não é vida (único pressuposto pelo qual se pode admitir a não penalização do aborto), não há razão para uma tutela penal...

    Mas não queria nada entrar no fundo da questão, sob pena de ficar mal disposto....

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  3. Não entrarei no fundo da questão, porque sei perfeitamente a tua opinião, e acho que nesta matéria ninguém vai mudar...

    Apenas para dizer que foi isso que disse: há que deixar de considerar os portuguese estúpidos, porque não o são! E por isso, não é por causa de eufemismos que as pessoas vão mudar o voto, sobretudo porque se trata de questões tão pessoais, muito para além de políticas!

    Continua a achar que o problema de "um dia" é incontornável", mesmo com graduação e com punições não penais: imagina: 10 semanas nada acontece, mas com + 1 dia já tem que pagar uma contra-ordenação (por exemplo). É sempre necessário estabelecer barreiras!

    P.S. Onde andam as pessoas deste blogue?

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  4. Independentemente da opinião de cada um, para se poder debater devidamente esta questão devemos todos chegar a um acordo relativamente a alguns conceitos científicos que não me parecem ser consensuais ou do conhecimento de todos como:

    o que é um embrião?
    Um feto?
    Um recém-nascido?

    E a chave de todo o debate,

    COMO SE DEFINE UMA VIDA HUMANA?

    O QUE SIGNIFICA 10 SEMANAS DE VIDA EMBRIONÁRIA?

    Parece-me mais urgente e determinante para o início do debate que todos saibamos o que realmente define cada um dos termos acima referidos, independente de estarmos a falar de aborto ou IVG,...

    Depois há questões que me parece que nunca terão o consenso de todos, como a questão das 10 semanas, entre outras...


    É um tema delicado que deve ser abordado com cuidado! E, acima de tudo, devemos ter sempre presente o que nos vai ser perguntado!

    O debate é relativo às 10 semanas! Sim ou Não! Não nos vai ser perguntado qual a semana que achamos mais correcta (se é que há alguma,...)!

    E temos que ser realistas e não podemos esperar uma revolução depois do refendo: a Era Pós-Referendo (independentemente da vitória do Sim ou do Não), em que o mundo se tornou um local perfeito e que deixou de ser necessário o planeamento familiar…

    Calma e muita tranquilidade!!


    Marta

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  5. A minha opinião é, naturalmente um SIM inquestionável à pergunta a fazer.
    Quanto à terminologia é isso mesmo, terminologia, uma questão formal.

    Esta é a pergunta e a resposta é uma de duas.

    Não me parece correcto que uma mulher por abortar seja condenada por um crime quando uma outra qq com algumas posses pode ir a Espanha "passar o fim de semana". É hipocrisia.

    Como é hipocrisia não implementar a educação nas escolas e querer já referendar.

    Deve-se despenalizar e implementar de facto todas as medidas conducentes a uma melhor educação sexual.

    Nisto ninguém é totalmente sério pois tivémos Governos de Direita contra a IVG que disseram que fariam isto e aquilo e nada foi feito, e ainda mais grave. Os grupos de cidadãos que se juntaram a favor do não há oito anos, que encheram os bolsos com a campanha e depois nada mais se ouviu deles a não ser agora que voltam a aparecer.
    Felizmente, desta vez não haverá contribuições do Estado para as campanhas.

    E da parte da esquerda também houve erros pois a não implementação efectiva de medidas como a educação sexual é da responsabilidade deles.

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  6. Sim, percebo tudo o que dizes. Mas é chocante que a pergunta seja enganadora, ou não?

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  7. Mas Paulo, o que está aqui em causa não é de direita nem de esquerda. São valores e convicções que nada têm a ver com programas ou planos políticos.

    Mas o post não é sobre isso. É sobre o escândalo da pergunta. Porque se pergunta despenalização quando o que se quer é liberalização? Porque se pergunta IVG quando está em causa a modificação do artigo referente ao Crime de Aborto?

    Ninguém pode negar que a pergunta é enganadora. E isso é ilegítimo de um Estado que se quer de direito. Porque pode haver quem vote em despenalização e seja contra a liberalização.

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  8. Honestamente, apesar de achar nobre a ideia de que devemos considerar que os cidadãos não são estúpidos ou incultos, acho que é evidente que, para a generalidade das pessoas que vão levantar o cu dos sofás e votar, é absolutamente indiferente o que lhe chamas.
    Acho que todos saberão o que verdadeiramente está em causa: deixar de punir (a punição com uma contra-ordenação é quase o mesmo que não punir) o aborto voluntário quando realizado até às dez semanas.
    Sinceramente, não acho que os termos em que é feita a pergunta seja uma escandaleira.
    E, se queres que te diga, penso o mesmo do uso da expressão "interrupção voluntária da gravidez". Achas mesmo que a generalidade das pessoas sabe que o artigo cuja alteração se pretende tem a epígrafe "Aborto"?
    Desde que todos percebam os efeitos práticos do que estamos a discutir, acho inócua a evidente imprecisão técnica da pergunta.
    Quanto ao limite das dez semanas, confesso que estou fora da minha área. Mas do que me recordo da discussão do anterior referendo, trata-se de um limite fixado em função do estádio de desenvolvimento do feto.

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  9. Eu não o diria melhor Roque, concordo em absoluto.

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  10. Oh Roque mas alguma vez o que está em causa é deixar de punir???
    Então o que estã em causa não é organizar o SNS para que as mulheres lá possam ir fazer abortos?
    Isso é despenalizar?
    Não briquem comigo! Está em causa liberalizar o que não é a mesma coisa.
    É diferente deixar de punir, não promovendo, ou organizar esse serviço no SNS!

    Desculpem mas estão a perguntar às pessoas coisa diferente do que querem pôr em prática

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  11. Gira o disco e toca o mesmo...

    Achas mesmo que algum adepto do NÃO vai votar SIM porque pensa que não se vai passar nada no SNS, mas antes nas clínicas? Vão mesmo raciocinar "Tá bem. Podes fazer o aborto. Mas não o farás à custa dos meus impostos!"?
    Parece-me claro que não. Dado o que está em discussão e a intensidade das posições que todos conhecemos, parece-me que esse aspecto vai ser tudo menos determinante.
    E honestamente acho que serão devidamente discutidos e divulgados todas as consequências do referendo. Pelo menos, tal informação chegará a quem a quiser obter.

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  12. A minha opinião é precisamente essa!Os portugueses sabem o que se está a perguntar, e as consequências do sim e do não!

    Concordo que se é possível usar termos mais correctos, que se usem - se bem que IVG e aborto são igualmente correctos!

    Mas daí a escandaleira, a recear que os resultados saiam deturpados por causa da formulação da pergunta - isso sim é achar que os portugueses são burrinhos!

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  13. Num referendo é essencial que haja rigor. E se os portugueses sabem o que está em jogo, porque é que, então, não se pergunta exactamente o que é pretendido pela lei - a liberalização do aborto?

    Espero sinceramente que o TC actue como deve e ordene a reformulação da pergunta ou a reformulação da lei.

    Roque: se bem que não é indiferente ter um Estado que, no SNS, se recusa a comparticipar tratamentos de fertilidade para quem não consegue ter filhos mas já vai, com o dinheiro dos contribuintes confortar uma mulher que queira abortar, não era a isso que me referia, como bem sabes.

    Uma despenalização implicaria apenas o desaparecimento da sanção penal e não a promoção do aborto em estabelecimentos públicos ou privados.
    Uma liberalização torna o aborto livre. São coisas diferentes e que nada têm a ver com a natureza pública ou privada do estabelecimento.

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  14. Como já te apercebeste, ninguém discorda da forma como distigues despenalização e liberalização. Sou o primeiro a reconhecer que a pergunta é, tecnicamente, deficiente.

    Agora, o que eu acho é que as deficiências da actual formulação da pergunta são manifestamente insuficientes para perverter todo o processo de expressão da vontade dos cidadãos ou para se poder concluir que estamos perante um elaborado esquema destinado a convencer as pessoas a votar de forma diferente da que votariam com outra formulação.

    Não vai acontecer como no referendo da regionalização em que os partidos não conseguiram explicar o que efectivamente ia acontecer.

    Aqui vai haver centenas de debates, milhares de discursos, panfletos em todas as direcções para esclarecer os votantes.

    E o que interessa acima de tudo aos votantes é saber se com essa decisão estão ou não a permitir que uma mulher aborte a gravidez de forma livre até às dez semanas.

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