quarta-feira, 19 de julho de 2006

Desilusões

O fenómeno das cruzadas, enquanto movimento que levou milhares de pessoas (desde reis a camponeses) a tentar recuperar pela força das armas o local onde acreditavam que o seu salvador falecera, sempre me despertou profunda curiosidade.

Afinal quem é que poderia ficar indiferente a algo que uniu (apesar de várias divisões internas) povos e governantes de países tão diferentes, que supostamente era o expoente máximo dos mais nobres ideais de cavalaria da altura e que materialização um conflito entre o Ocidente e o Oriente?
O problema é que esta visão romanceada não resiste a uma inspecção mais cuidadosa. Quem escolhe ir um pouco além da formação que nos é dada na escola ficará certamente desiludido com o que o aguarda.
Apesar de esta visão ainda persistir junto de algumas camadas menos esclarecidas da população, a verdade é que desde há muito que está mais que provado que, as mais das vezes, as motivações que levaram os cruzados ao Oriente nada tinham a ver com fervor religioso.
O carácter quase mercenário das cruzadas atingiu ponto mais obsceno em 1202, quando o Papa Inocêncio III apelou junto da cristandade para a realização de uma nova cruzada destinada a conquistar Jerusalém. Uma vez reunidas as tropas em Veneza, os seus líderes constataram que não tinham ouro suficiente para pagar aos venezianos o transporte até à terra santa. Surgiu então uma ideia brilhante: os cruzados conquistariam Zara, uma cidade veneziana na Dalmácia que se revoltara em troca de um adiamento do pagamento.
Entretanto chegaram notícias de Bizâncio. O filho de Isac II imperador deposto, Alexius IV, conseguira fugir e apelara aos cruzados para o ajudarem: em troca prometia-lhes dinheiro e os recursos do império para a conquista de Jerusalém. Os cruzados aceitaram de imediato e, depois da morte de Alexius IV, decidiram conquistar Constantinopla em proveito próprio. Quando finalmente caiu, Constantinopla foi saqueada durante 3 dias.
Não era bem isto que tinha em mente quando pensava nos cruzados.
E, como isso não bastasse, é hoje também um dado adquirido que algumas das figuras mais emblemáticas desse período não possuíam a nobreza que gostaríamos que possuíssem. Exemplo crasso disso é a figura de Ricardo Coração de Leão que, em 1191, após desembarcar em Chipre devido a uma tempestade, decidiu massacrar o líder bizantino da ilha que lhe pediu para partir, bem como os habitantes de todas as cidades que lhe resistiram.
Este post não é uma simples apontamento sobre um obscuro aspecto da nossa História que não poderia interessar menos à maior parte das pessoas. Só sabendo de onde vimos, só conhecendo o passado que nos define é que podemos ter uma melhor perspectiva do que o futuro nos reserva.
Há que pensar e formar uma opinião sobre as reais vantagens e desvantagens, sobre o real valor de certos eventos para compreendermos verdadeiramente aquilo sobre que a nossa cultura e identidade assenta. E para isso é preciso conhecer o nosso verdadeiro passado, e não uma versão romanceada e deturpada da realidade.
Para saber mais:
"As Cruzadas Vistas pelos Árabes", de Amin Maalouf, da Difel 82 - Difusão Editorial, S.A.;

1 comentário:

  1. Nada disto surpreende, os crimes e os saques em nome de Deus fizeram-se, fazem-se e irão continuar a fazer-se.
    Aliás, as nossas Descobertas tb estão pejadas de histórias destas, e tudo em nome da evangelização.

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